A última vez que aterrizei em Bucareste foi em 2018 - e não foi para ficar na cidade.
Naquele momento minha missão era pegar uma condução do aeroporto até Brasov.
Tentei barganhar o valor do taxi, o último ônibus já tinha partido. Quatro taxistas trocavam mensagem comigo pelo whatsapp, minha viagem estava à leilão: o mais barato levava.
Negociar me parecia normal até ver as mensagens dos taxistas serem apagadas. Não por um, nem dois, nem três, nem quatro. Quando vi meu número estava bloqueado por qualquer taxista encontrável na internet - que atendia o aeroporto.
Meu tórax queimou, a boca trepidava, formigas saiam dos ombros para as mãos, a noite parecia dia para os meus olhos dilatados.
Apático, atônito e atento.
O plano B era pegar um ônibus até o centro da cidade e tentar uma alternativa entre um hotel, um trem, um uber.
Uma reação anormal para algo corriqueiro em uma vida móvel. 2018 foi um ano atípico. Dois meses antes de encostar os meus pés na capital romena eu fui diagnosticado com depressão recorrente grave.
O doutor psiquiatra me deixou claro:
“Lucas, casos como o seu são raros. Uma remissão é improvável, mas não impossível. Procure um psicólogo, eu posso ser o seu psiquiatra enquanto você viaja. Aqui estão os telefones de emergência na Grécia [onde fui diagnosticado]. Os remédios vão levar no mínimo um mês para fazer efeito. Tente parar de trabalhar, você é prioridade agora.
Não ia bem no trabalho, não estava bem no relacionamento, a vida parecia do avesso.
Quando meus pés tocam pela segunda vez em Bucareste
A memória não deu trégua. Pisar no mesmo chão de 2018, agora em 2022, com uma dose maior de venlafaxina (meu remédio para depressão), um relacionamento que chegou ao fim e uma empresa - ao qual era sócio - diluída na bagagem me pesaram.
Atemporal, análogo e anímico.
Igual e diferente, ao mesmo tempo.
A lista de tarefas não muda quando me mudo:
comprar um chip para o celular;
tirar algum dinheiro do caixa;
avisar que cheguei para a anfitriã do airbnb;
pegar um taxi;
fazer o check-in.
Assim o fiz.
Sentei no taxi e deixei as memórias escaparem pela janela do carro. O vento soprava a oitenta quilômetros por hora, cobrindo meus lábios secos aquecidos de ansiedade e afagados pelo frio do outono romeno.
Tudo parecia certo.
Ao passar pelo arco da vitória
Quinhentos metros separam a minha casa do monumento de guerra. A mala, o guitalele e a mochila estavam comigo. Peguei a chave, abri a porta e logo o cheiro de roupa de cama limpa sussurraria no meu ouvido:
Você está em casa.
Agora, isolado dos amigos, recomeçaria minha jornada sozinho. Um tempo para sentir tudo que segurei no inconsciente pelos últimos 3 meses.
Uma cidade que se reconstruiu tantas vezes - talvez - me inspiraria a lembrar que a vida é feita de crises, batalhas, derrotas e vitórias.
Os bastardos alimentados pela loba
A mitologia fundadora de Roma, na Itália, conta que Rômulo e Remo foram abandonados no rio Tibre em um cesto, como punição para a sua mãe, Reia Sílvia, que engravidou do deus Marte.
Os gêmeos foram encontrados na encosta por uma loba que os criaria, amamentaria, permitindo-os viver uma nova vida.
O recado está em mim
A cidade muda de acordo com o que sentimos. O mundo externo e interno estão interagindo a todo momento.
Eu vejo no mundo o que há em mim e o mundo me vê com o que há nele.
O arco, a loba e todos os símbolos que me chamam atenção são os que me fazem sentir, e assim que sinto, passam a fazer sentido.
O abandono foi a bagagem que preparei para Bucareste e a ironia que Bucareste preparou para mim.
Eu não estava sozinho ao me sentir sozinho
O relógio não pararia de correr, mesmo que o mundo estivesse lento para mim
O natal enfeitará a cidade de memórias da distância física e emocional da família
Jovens romenos me lembrarão que para voar é preciso sair do chão e se preparar para a queda
Até a memória emocional e muscular te lembrar: você sabe decolar e aterrizar.
Logo me sinto seguro de novo.
Que bom é ler sua narrativa :) feliz que está aqui pra compartilhar